Bruno Pereira fez jornalismo na UFPE e participaria de filme inspirado no seu trabalho e na proteção de indígenas; ‘Ele será uma inspiração’, diz amigo

Bruno Pereira e Leonardo Sette em um voo entre Manaus e Tabatinga, no Amazonas, outubro de 2018 — Foto: Arquivo pessoal

O indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira estudou jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e participaria de um filme inspirado no seu trabalho e na proteção dos povos indígenas isolados. É o que diz o diretor de cinema Leonardo Sette, amigo dele desde a época da universidade. “Ele vai ser uma inspiração para toda a equipe”, afirma Leonardo.

O paraibano que cresceu no Recife acompanhava o jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, em viagem pelo Vale do Javari, quando a dupla sumiu, no domingo (5).
Nesta quarta, dois homens confessaram ter matado os dois e a Polícia Federal disse, em coletiva, que corpos foram encontrados em uma área apontada por suspeitos. No entanto, será necessário confirmar tudo por meio de perícias.

Amigo de Bruno há mais de duas décadas, Leonardo Sette ainda tinha esperança de que o indigenista fosse encontrado com vida quando, conversou com o g1, antes de a PF informar ter localizado corpos. Contou que os caminhos dos dois se cruzaram no ano 2000, quando eles ingressaram no curso de jornalismo.
Descrito por colegas como um aluno de inteligência “fora da média”, Bruno deixou a UFPE em 2003. Segundo Leonardo, porque não tinha interesse no curso. Era uma das coisas que os dois tinham em comum, assim como o zelo por povos indígenas.

“Ele trabalhou um tempo no INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] no Recife, mas já sonhava com a Amazônia e os povos indígenas isolados. Eu comecei a trabalhar na Amazônia primeiro, formando cineastas indígenas e produzindo filmes. Aí ele conseguiu um trabalho no programa ambiental da hidrelétrica de Balbina. Assim, conseguiu ir para a Amazônia”, contou.

O jornalista André Duarte foi colega de escola do indigenista, mas levou um tempo para perceber que o homem que havia desaparecido no Vale do Javari, com o jornalista inglês, era o Bruno que ele conhecida.
É que na lista de chamada de estudantes no antigo Colégio Contato, na área central da capital pernambucana, ele era conhecido como Bruno Cunha. Por lá, também era chamado de “cabeça”, apelido dado por seus colegas.

“Popular, extrovertido e dono de uma risada espalhafatosa, o Bruno daqueles tempos já demonstrava um espírito de liderança e inquietude. Sua coragem, hoje conhecida internacionalmente, já se revelava nas entrelinhas daqueles anos felizes entre 1996 e 1998. Defendia os amigos e assumia a culpa por broncas alheias”, descreveu, em uma publicação sobre o indigenista em uma rede social (leia detalhes mais abaixo).

Longa metragem

Leonardo Sette compartilhou momentos com o amigo e revelou que está produzindo um longa metragem de ficção inspirado no trabalho dele e na proteção dos povos indígenas isolados. Os dois planejavam trabalhar juntos no filme.

Sette contou que a pesquisa para o roteiro começou em 2012, com apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura ( Funcultura).
A atuação do indigenista nas filmagens seria como consultor, na construção dos cenários da forma mais realista como um indigenista que está monitorando em torno de povos isolados e como eles se comportam.
Sette disse que, eventualmente, Bruno poderia ter até um papel. “O roteiro foi se desenvolvendo ao longo dos anos e fomos captando os recursos e me associei a Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, da produtora CinemaScópio, e conseguimos parceiros internacionais”, disse.
Esse, no entanto, não era o único projeto dos dois. “Nos últimos anos, a gente desenvolveu projetos juntos. Estive lá no Vale do Javari, dei oficinas de vídeo pra o povo Matsés”, lembrou.

Trajetória na Amazônia

Depois de alguns anos na Usina Hidrelétrica de Balbina, Bruno Pereira foi aprovado no concurso da Fundação Nacional do Índio (Funai). Quando passou no concurso, escolheu ir pra o Vale do Javari, mesma região onde desapareceu junto com o jornalista inglês Dom Phillips
A terra indígena é o local que tem a maior concentração de indígenas isolados do mundo. No entanto, a área também fica em uma posição geográfica que atrai organizações criminosas, muitas delas atuando em mais de um tipo de crime ao mesmo tempo.

“Não é muito comum. Quem tem nota alta prefere lugares mais tranquilos, mas ele já quis ir pra lá pela paixão, por essa ideia de proteger os povos isolados”, lembrou Leonardo.

Segundo Leonardo Sette, o amigo não ingressou de imediato no departamento que queria, que era o trabalho com povos isolados. Teve que começar trabalhando na sede da Funai em Atalaia do Norte com os povos indígenas contatados.
“Ele sempre teve diálogo com a frente de proteção dos povos isolados, que é para onde ele queria ir. Ficou acertado que ele deveria trabalhar um bom tempo lá com os índios contatados e futuramente teria uma chance nesse grupo dos índios isolados”, disse.
Sette conta que o indigenista começou a ter atitudes combativas com relação a crimes assim que ingressou na Funai de Atalaia do Norte, onde rapidamente virou o coordenador.
“Ele fez muita coisa, desde tirar título de eleitor dos índios, uma tarefa difícil em uma área muito grande, fazendo com que eles votassem pela primeira vez, com as urnas levadas em helicóptero para as aldeias. Ele fazia parceria com o Exército e com o TRE [Tribunal Regional Eleitoral]. Dessa maneira, o prefeito foi obrigado a ir a aldeias e prestar contas, fazer campanha”, disse.

Constantes ameaças

Em 2018, Pereira se tornou o coordenador-geral de Índios Isolados e de Recém Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai), quando chefiou a maior expedição para contato com índios isolados dos últimos 20 anos.
Ele foi exonerado do cargo em outubro de 2019, após pressão de setores ruralistas ligados ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Segundo a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), nos últimos anos, atuava na sede do órgão, em Brasília.
“Ele teve uma carreira brilhante, se sacrificou bastante. Não era fácil morar lá em Atalaia do Norte, lidar com esses problemas, com poucos recursos. Fizeram uma operação contra o garimpo e explodiram balsas de garimpo”, lembrou Leonardo Sette.

Entenda o caso

O indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips, desapareceram no dia 5 de junho na região do Vale do Javari, na Amazônia.
Nesta quarta (15), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, informou em uma rede social que a Polícia Federal (PF) encontrou “remanescentes humanos” no local das buscas.
No mesmo dia, segundo fontes da Polícia Federal, Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como Pelado, confessou envolvimento no assassinato de Pereira e Phillips. O irmão dele, Oseney da Costa de Oliveira, conhecido como Dos Santos, também está preso suspeito de participação no caso.
Logo após o desaparecimento dois dois, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) afirmou que Bruno recebia constantes ameaças de madeireiros, garimpeiros e pescadores e que era um “experiente e profundo conhecedor da região”.
O jornal britânico “The Guardian”, do qual Phillips era colaborador, informou que o repórter estava trabalhando em um livro sobre meio ambiente.
Ele morava em Salvador (BA) e escrevia reportagens sobre o Brasil há mais de 15 anos. Também publicou em veículos como “Washington Post”, “The New York Times” e “Financial Times”.

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