Em campanhas eleitorais é comum estourarem escândalos de dossiês, grupos clandestinos de espionagem e afins. O esforço dos comitês, claro, é sempre no sentido de reunir elementos capazes de desestabilizar adversários e, com isso, atrair votos. Mas quase sempre as coisas descambam para impropriedades ou para ilegalidades flagrantes.
Para ficar em apenas algumas confusões rumorosas da crônica política recente, vale lembrar dos aloprados ligados ao PT que tentaram comprar um dossiê na campanha paulista de 2006 para atingir o tucano José Serra, então candidato a governador. As informações são do colunista Rodrigo Rangel, do Metrópoles.
A trama virou caso de polícia. Quatro anos depois, em 2010, veio à tona a existência de um grupo de inteligência montado para servir à campanha de Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto. A tropa era financiada por um empresário com contratos no governo. As informações são do colunista Rodrigo Rangel, do Metrópoles.
Nesta semana, a jornalista Andréia Sadi, da TV Globo, revelou a aproximação da campanha de Jair Bolsonaro com o hacker Walter Delgatti, preso em 2019 e depois denunciado como o ponta de lança do roubo de mensagens do Telegram que expôs a força-tarefa da Operação Lava Jato e abriu caminho para as decisões judiciais que resultaram na reabilitação política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
É um escândalo, e o ponto crucial é o seguinte: o hacker quer dinheiro, e está se vendendo como um personagem capaz de interferir no jogo eleitoral.
Viagem de carro até Brasília
O ressurgimento de Delgatti no noticiário, com direito a reunião fora de agenda com o próprio Bolsonaro no Palácio da Alvorada, vem sendo tratada até aqui como algo insólito, curioso. Mas é muito mais do que isso. Trata-se do primeiro episódio conhecido de alopragem da atual campanha presidencial – e poucos se deram conta disso, talvez porque o entorno do presidente da República percebeu o potencial de dano e correu para interromper a maquinação. Só que pode ter sido tarde.
À coluna, fontes bem-posicionadas na campanha de Bolsonaro admitiram que o hacker se aproximou dizendo estar precisando de dinheiro e mostrando-se disposto a fazer o que fosse preciso desde que fosse bem remunerado.
A volta de Delgatti a Brasília começou a ser pavimentada a partir de um encontro que ele teve com a deputada bolsonarista Carla Zambelli em Ribeiro Preto, no interior de São Paulo. Na ocasião, o hacker disse que estava se sentindo abandonado pelo PT e se mostrou interessado em ajudar na campanha de Bolsonaro, a depender da “ajuda” que recebesse. Zambelli respondeu que poderia resolver a parada.
Ela pediu, depois, para Delgatti encontrá-la em Brasília nesta semana. Acompanhado de Ariovaldo Moreira, o advogado encarregado de defendê-lo desde a eclosão da chamada Vaza Jato, o hacker viajou de carro do interior de São Paulo até a capital federal. A viagem, feita por terra para ser mais discreta, foi providenciada por Zambelli. Um filho do advogado acompanhou a dupla.
Ao chegar, no domingo à noite, eles foram acomodados em um hotel modesto vizinho à sede nacional do PL, partido de Jair Bolsonaro e de Zambelli, na região central de Brasília. Assim como o carro usado na viagem, foi a deputada bolsonarista que se encarregou da hospedagem. Zambelli ficou de encontrá-los na segunda. Não conseguiu.
O real objetivo da “parceria”
Na terça, o hacker e o advogado foram chamados à sede do PL. Com Zambelli e o irmão dela, Bruno, candidato a deputado estadual em São Paulo, eles se reuniram com ninguém menos que Valdemar da Costa Neto, o chefão do PL. Participou ainda da reunião o marido da deputada, o coronel Antônio Aginaldo de Oliveira. Na sequência, o hacker falou com Duda Lima, marqueteiro da campanha de Bolsonaro.
A conversa girou em torno da contribuição que Walter Delgatti poderia dar à campanha de Bolsonaro. A parte da reunião que veio a público até agora é um tanto rósea, e tem sido tratada como algo quase banal: por seu suposto conhecimento sobre sistemas eletrônicos, ele daria impulso ao discurso de Bolsonaro contra as urnas. Balela, até porque quem conhece Delgatti de perto o define muito mais como estelionatário do que propriamente como um hacker habilidoso.
Além disso, circulou a versão de que ele teria mensagens ainda inéditas com potencial de atingir o PT e até ministros de tribunais superiores com os quais Bolsonaro vive em pé de guerra – essa versão é negada por pessoas próximas ao próprio Delgatti e por quem atuou na investigação do roubo de mensagens pelo hacker.
O verdadeiro interesse dos bolsonaristas, porém, estaria em uma terceira questão: a depender das garantias que lhe fossem dadas e do quanto a campanha de Bolsonaro se mostrasse disposta a socorrê-lo financeiramente, Delgatti poderia falar – sabe-se lá se com verdades ou mentiras – sobre como se tornou peça-chave da Vaza Jato.
As declarações teriam potencial de criar embaraços para Lula e para o PT, fazendo barulho em torno justamente da história que foi fundamental para colocar o petista em condições de disputar as eleições deste ano. Por exemplo, ele poderia dizer publicamente se foi bancado pelo partido de Lula ou por aliados. Criaria uma confusão monumental.
O rompimento com o advogado
Na incursão desta semana por Brasília, houve desentendimentos no caminho. O hacker e o advogado romperam por divergências relacionadas à parceria com a campanha de Bolsonaro. O motivo da discórdia é mantido em segredo pelo defensor. Ariovaldo Moreira e o filho retornaram a São Paulo. Delgatti ficou.
O plano avançou mesmo assim, e seguiu para um ponto inimaginável. Zambelli e os demais envolvidos colocaram o hacker frente a frente com Jair Bolsonaro, dentro do Alvorada, em um movimento que seria considerado temerário pelo staff de segurança presidencial de qualquer país minimamente sério – além de ser um condenado pela Justiça ainda cumprindo pena pelos crimes cometidos ao invadir o Telegram de dezenas de autoridades da República, Delgatti até outro dia era festejado pelos principais adversários de Bolsonaro. Como a avaliação reinante até então era a de que a aproximação valeria à pena do ponto de vista eleitoral, o esforço foi levado adiante.
O medo da campanha e a operação-abafa
A alopragem não avançou porque o núcleo da campanha de Bolsonaro se deu conta de que a história poderia se voltar contra o presidente e correu para colocar em marcha a operação-abafa – até agora bem-sucedida, porque as reais intenções da parceria com o hacker não haviam sido ainda expostas.
A favor da decisão de suspender o plano, pesou ainda a hipótese de o hacker estar fazendo jogo duplo, a serviço da campanha rival – por hipótese, ele bem que poderia ser um Cavalo de Tróia enviado para, depois, expor as ofertas recebidas do comitê bolsonarista.
Como parte da operação-abafa, Carla Zambelli foi orientada a submergir e a não falar sobre a trama. Agora, a campanha de Bolsonaro age para circunscrever a ela a iniciativa. “Temos uma aloprada”, diz em privado um integrante do comitê, a despeito de o hacker ter sido recebido por Valdemar da Costa Neto, o “dono”do PL, e pelo próprio Bolsonaro.
De um jeito ou de outro, Walter Delgatti saiu ganhando, e está em condições de conseguir o que queria. Ele agora é um homem-bomba que pode ser usado na campanha por um lado ou por outro. Pode explodir para beneficiar Bolsonaro, com a eventual retomada do plano interrompido, ou pode explodir para beneficiar Lula, se resolver falar sobre as conversas (e as propostas) que o trouxeram nesta semana a Brasília e o colocaram diante do presidente da República.
Atualização — Após a publicação da reportagem, a deputada Carla Zambelli afirmou que Walter Delgatti não lhe pediu dinheiro. A coluna mantém todas as informações publicadas.